1. Introdução
Um tema que desperta muita atenção entre especialistas da área tributária é, sem sombra de dúvida, o planejamento tributário.
Ao longo dos últimos anos, muitos debates foram realizados sobre o limite para os contribuintes se planejarem tributariamente com vistas a obter reduções em suas cargas tributárias.
Obviamente, a liberdade para organizar seus negócios é garantida pela Constituição Federal e está implícita tanto nos direitos e garantias fundamentais quanto nos pilares da ordem econômica brasileira.
No entanto, tal liberdade é absoluta?
Em outras palavras, os contribuintes pátrios poderiam realizar todo e qualquer procedimento para reduzir a carga tributária aplicável, desde que cada etapa estivesse dentro dos limites da legalidade?
Ou haveria limites para a liberdade de os contribuintes se estruturarem em relação a seus tributos? Se sim, quais seriam esses limites? Até onde os contribuintes poderiam ir para obterem reduções do ponto de vista fiscal?
A discussão sobre esses pontos já não é novidade na prática internacional e no Brasil. No entanto, podemos estar próximos de um divisor de águas sobre o tema nos próximos tempos.
No presente informativo, separaremos os principais pontos que os profissionais tributários e fiscais precisam conhecer para enfrentar questões relativas a planejamento tributário.
2. Primeira: como andou a jurisprudência administrativa até aqui?
Como se sabe, o tema do planejamento tributário, em que pese poder ter relação com diversos temas, tem sido muito mais aprofundado e difundido em relação aos tributos sobre a renda, de competência federal.
Por essa razão, pode-se dizer que o primeiro órgão responsável por analisar planejamentos tributários realizados em território pátrio foi o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”), responsável por julgar os recursos apresentados por contribuintes em face de autuações fiscais mantidas pelas primeiras instâncias de julgamento da Receita Federal do Brasil.
Assim, a jurisprudência do CARF desempenhou e tem desempenhado relevantíssimo trabalho na definição dos contornos do planejamento tributário no Brasil, em que pese não ter sido isenta de críticas ao longo dos tempos.
Sobre a jurisprudência do CARF, atualmente é possível verificar três momentos distintos em relação ao entendimento firmado:
- Primeiro momento: na primeira leva de casos relativos a planejamento tributário analisada pelo CARF, a corrente adotada foi considerada positivista. Por essa corrente, entendia-se como lícito o planejamento tributário, desde que todas as etapas estivessem de acordo com a legislação privada. Assim, os contribuintes poderiam praticar quaisquer atos lícitos do ponto de vista da legislação do direito privado, ainda que única e exclusivamente para obter reduções da carga tributária. Essa corrente perdurou até o final da década de 2000;
- Segundo momento: a segunda fase foi denominada de valorativa. Essa fase representou uma reação ao resultado observado na prática após a primeira corrente. Houve planejamentos lícitos do ponto de vista do direito privado, mas que representavam claro abuso, como divisão de uma mesma empresa em vários CNPJs para manutenção do lucro presumido. Nessa linha, a segunda corrente marcou o surgimento do critério do propósito negocial. Nesse ponto, para os planejamentos em que não se pudesse inferir um propósito negocial para além da questão fiscal passaram a ser invalidados pelo CARF. Além disso, passou-se a analisar o planejamento como um todo, independentemente da licitude de cada etapa em separado. Nessa fase, pode-se dizer que as autoridades fiscais passaram a entender planejamento tributário como sinônimo de abuso, generalizando a conduta dos contribuintes que fizeram os atos abusivos;
- Terceiro momento: apesar de não se poder dizer ter havido o encerramento do segundo momento, pode-se dizer que houve uma reação à segunda corrente, mais extremada, em que não se podia efetuar atos com vistas à redução de carga tributária. Passou-se, então a analisar se haveria um descompasso total entre a intenção do contribuinte e o que foi externado por meio dos atos praticados efetivamente. Nessa fase, passou a haver uma análise mais caso-a-caso, analisando-se os elementos e o contexto geral para aferir se haveria uma simulação ou não.
3. Segunda: o que pode mudar com a ADI 2446?
Paralelamente à evolução da jurisprudência do CARF, é relevante dizer que a Confederação Nacional do Comércio propôs, em 2001, uma ação direta de inconstitucionalidade perante o STF, notadamente em relação ao parágrafo único do art. 116 do CTN, incluído pela Lei Complementar nº 104/2001.
Basicamente, a CNC alegou, em sua ação, que a possibilidade de o fisco considerar ineficazes determinados negócios jurídicos para fins tributários afrontaria o princípio da legalidade, por possibilitar a tributação de fatos não ocorridos, além de introduzir a interpretação econômica, que resultaria na tributação por analogia.
Apesar de já ter decorrido um certo tempo entre o ajuizamento da ação e a presente data, fato é que o STF está a um voto de estabelecer um relevante precedente para o caso.
O surpreendente é que a questão vem se desenrolando com a tendência de a ação ser julgada improcedente, ou seja, é provável que, ao final do julgamento em questão, o parágrafo único do art. 116 do CTN ainda prevaleça.
No entanto, o fundamento exposto no voto da Ministra Cármen Lúcia tem gerado expectativas positivas entre contribuintes pátrios. Isso porque o voto faz a clássica distinção entre elisão e evasão para afirmar que o art. 116, parágrafo único do CTN, visa a combater a evasão.
Apenas para rememorar, a elisão é a estruturação lícita de formas de redução da carga tributária. A evasão, por sua vez, é a sonegação em si, que seria a adoção de meios ilícitos para ocultar a ocorrência do fato gerador.
Nesse contexto, causa estranheza a assertiva do voto de que o parágrafo único do art. 116 do CTN seria destinado ao combate da evasão fiscal, já que para isso o referido artigo seria até dispensável.
Independentemente de críticas que possam surgir ao voto, fato é que muitos contribuintes estão interpretando o seu teor como a possibilidade de retorno à corrente mais formalista, exposta no tópico acima, segundo a qual o planejamento seria aceito desde que todas as etapas fossem lícitas do ponto de vista formal.
4. Terceira: ainda há incertezas no campo do planejamento tributário?
Ainda que muito contribuintes estejam interpretando o voto da Ministra Cármen Lúcia como o retorno ao momento de análise dos planejamentos tributários sob o prisma mais formalista, fato é que, ainda que a ADI 2446 realmente tenha o desfecho esperado, seus efeitos são incertos.
Isso porque, ainda que se siga o caminho do voto em questão, as considerações foram tecidas no contexto de declarar constitucional o parágrafo único do art. 116 do CTN. Essa restrição que alguns contribuintes estão ventilando, portanto, deveria vir com um julgamento de parcial procedência, declarando-se a inconstitucionalidade sem redução de texto ou interpretação conforme a Constituição, o que não parece ser o caso.
Assim, fato é que não é possível, no momento, afirmar com certeza que toda a construção já realizada sobre planejamento tributário seria esquecida.
Por essa razão, é fortemente recomendável que os contribuintes, ao vislumbrar formas de estruturação para obtenção da redução de carga tributária, se atentem às questões já decididas pelo CARF anteriormente.
5. Quarta: quais cuidados os contribuintes ainda devem tomar?
Como mencionamos, apesar de haver a chance de a questão tomar um rumo diferente pelo julgamento da ADI 2446, ainda é recomendável que os contribuintes estejam atentos e não reputem que qualquer planejamento será validado daqui para frente, desde que cada etapa seja lícita do ponto de vista do direito privado.
Nesse contexto, vale relembrar alguns elementos que podem auxiliar os contribuintes a terem sucesso em caso de questionamento por parte das autoridades fiscais.
Em primeiro lugar, uma expressão muito citada a partir da obra de Marco Aurélio Greco, que é uma das referências no tema, foi a observação “do filme ao invés da foto”. Isso significa que os contribuintes devem estar atentos a todos os atos a serem praticados no curso de uma restruturação. A valorização do “filme” ao invés da “foto” significa que não importa somente que cada etapa (“foto”) seja lícita, mas que todo o contexto (“filme”) demonstra uma intenção compatível com as etapas adotadas.
Nesse sentido, um elemento clássico que é muito valorizado nos julgados do CARF é o tempo decorrido entre operações. Por exemplo, há casos de subscrição de capital com ágio e integralização em dinheiro seguida de cisão em que a empresa que subscreveu o aumento de capital sai da operação da cisão com um determinado ativo anteriormente detido pela sociedade que recebeu o aporte. Essa operação ficou comumente conhecida como “casa-separa”.
Nesses casos, em alguns precedentes analisados, o CARF verificou que muitas vezes todos os atos inerentes à operação eram praticados ao longo de poucas horas ou dias. Esse fato costumava ser levado em consideração, de forma que a estranheza de uma complexa operação ser levada a cabo em poucas horas ou dias pode pesar na decisão do caso.
Há casos também que a análise do “filme” fez o CARF concluir que a redução de capital com entrega de bem ao sócio pessoa física com a posterior venda desse bem pelo sócio seria indevida. Nesses casos, entendeu-se que a redução de capital teria vindo após a celebração do contrato de venda do ativo em questão, objeto da redução de capital.
6. Conclusões
Como vimos, ainda há poucas definições em matéria de planejamento tributário no Brasil.
Ainda que possa haver uma mudança de rumos com o julgamento da ADI 2446, é recomendável que os contribuintes permaneçam atentos aos parâmetros definidos pelo CARF.
Isso significa que, em eventual planejamento ou restruturação, é importante analisar do primeiro passo ao último em conjunto, verificando se o “filme” dá conta de uma intenção coerente com os atos praticados, contando, portanto, uma história factível.
0 comentário