Não é novidade que a economia vem sofrendo robustas alterações diante da digitalização dos negócios.
Atualmente, as empresas mais valiosas do mundo não são mais as grandes indústrias, mas as empresas voltadas à economia digital.
Essas empresas têm presença global, realizam negócios com clientes, indivíduos e empresas, sem qualquer necessidade de presença local.
Como exemplos dos negócios desempenhados, há o e-commerce, streaming, plataformas de economia compartilhada, redes sociais etc.
A inovação que essas empresas representaram no cenário da economia global também vem impondo desafios aos sistemas tributários, já que estes foram desenhados com a premissa de empresas e negócios mais fixos em determinados locais.
O fato de que os sistemas tributários não foram inicialmente imaginados para esses negócios disruptivos tem levado à possibilidade de as empresas reduzirem significativamente suas cargas tributárias globais.
Nesse sentido, algumas discussões vêm surgindo em âmbito global, internacional e até local, sobre como tributar de forma justa e equânime esses novos negócios da era digital.
Este artigo trará algumas das discussões atualmente existentes e os projetos de Lei que existem no Brasil sobre o tema.
De toda forma, a questão ainda está no âmbito das discussões e propostas. Ainda não há, em nenhum país, uma medida concreta já vigente de tributação desses negócios digitais.
1. O que a OCDE vem dizendo?
Talvez a voz mais relevante atualmente na discussão seja a OCDE. Como se sabe, a OCDE é uma organização internacional que visa a estimular o desenvolvimento econômico.
Apesar de o Brasil ainda não ser parte da OCDE, os entendimentos exarados por tal organismo são relevantes já que nosso país é relevante participante das discussões lá realizadas, especialmente em matéria tributária. Também, sabe-se que o Brasil tem manifestado grande interesse de ingressar como membro da OCDE.
Em relação à tributação dos negócios digitais, a OCDE dedicou especial relevância no relevante estudo realizado sobre erosão de bases tributáveis e remessa de lucros a outros países. Esse estudo foi dividido em quinze pontos diversos. O primeiro deles foi justamente o endereçamento de desafios originados pela digitalização da economia.
Nesse ponto, a OCDE apontou que os problemas da digitalização da economia para a tributação, que seriam: (i) o fluxo de bens intangíveis, a mobilidade dos usuários e dos negócios, (ii) a criação de um enorme banco de dados dos usuários, geralmente com dados fornecidos gratuitamente por estes, e (iii) o sucesso na estratégia dessas empresas de evitar o status de estabelecimento permanente nos países em que realiza negócios.
Diante disso, de forma geral, a OCDE sugere o combate à simulação e planejamentos abusivos, reformas no conceito atualmente utilizado de estabelecimento permanente e a revisão nas regras de preços de transferência.
Como se percebe, as sugestões são mais genéricas. Não há uma definição de critérios e parâmetros para tributar os negócios digitais. Também, a adoção das sugestões dependeria de alterações na legislação interna de cada Estado, o que dificulta o combate à evasão internacional, já que seria importante uma consistência entre as legislações de diferentes jurisdições.
Nesse contexto, recentemente, em janeiro de 2020, os membros da OCDE juntamente com os países participantes (grupo denominado “Inclusive Framework”) fez uma declaração sobre os próximos passos no endereçamento da tributação da economia digital.
Nessa declaração, foi mencionada uma abordagem unificada entre os países para realocar competências tributárias adaptando-se aos novos modelos de negócios, atribuindo o direito de tributar ao estado de domicílio do consumidor. Nesse sentido, a declaração separa os rendimentos possivelmente tributáveis no estado de domicílio do consumidor em três categorias: (i) um percentual de receitas alocado ao estado de domicílio do consumidor, que reflitam os lucros relacionados à atividade desempenhada nesse estado, especialmente em relação a serviços digitais, (ii) uma remuneração fixa baseada no princípio do “arm’s length”, definida de acordo com as funções desempenhadas , e (iii) quaisquer valores que representem um lucro decorrente de atividade no estado de domicílio do consumidor, que não esteja abrangido nos itens acima.
Como se observa, o ponto que tangencia toda a discussão é o deslocamento da competência tributária para o estado de domicílio do consumidor, já que, na era digital, a atividade em determinados países independe completamente de qualquer estrutura física nestes.
Segundo a declaração, as medidas visam a atingir negócios de buscas online, redes sociais, plataformas de intermediação online, streaming, jogos online, serviços de computação em nuvem e serviços de publicidade online.
2. A diretiva do Conselho da Comunidade Europeia para Serviços Digitais
Um ato relevante em relação à tributação dos negócios digitais foi a diretiva do Conselho da Comunidade Europeia para Serviços Digitais, já que foi mais direta e objetiva, elencando até critérios para definir a tributação de tais negócios.
A ideia básica seria a de reformar as regras de tributação corporativa para alocar os lucros nos Estados onde os negócios tem significativa interação com os usuários pelos canais digitais.
Nesse contexto, uma relevantíssima sugestão foi a possibilidade de se tributar estabelecimentos permanentes virtuais, que seriam aqueles com presença digital significativa no Estado em questão. Essa presença relevante seria definida por: (i) auferimento de receitas de venda de produtos e serviços superior a sete milhões de euros, (ii) detenção de plataforma com mais de cem mil usuários, ou (iii) realização de três mil contratos oriundos de negócios online.
A diretiva ainda contém uma segunda proposta de um imposto provisório para garantir que todas as atividades atualmente sem tributação fossem imediatamente sujeitas à incidência e passassem a gerar receitas para os Estados membros. Seria um imposto subsidiário, aplicável sobre receitas que escapassem da regulação fiscal atual. Como exemplos, seria possível citar a venda online de espaço publicitário, intermediação de negócios online e venda de dados fornecidos por usuários. A duração seria até a reforma mais ampla ser implementada.
A diretiva ainda depende de aprovação por parte do Parlamento da União Europeia.
3. A posição da França
Em 2019 a França deu o primeiro e talvez mais relevante passo até o momento para a tributação da economia digital, focando seus esforços nos gigantes da tecnologia. O tributo ficou conhecido como “tax GAFA”, referindo-se ao acrônimo de Google, Apple, Facebook e Amazon.
A lei aprovada pelo Parlamento francês prevê a incidência de um imposto de 3% sobre a receita bruta das empresas cujas vendas globais superassem 750 milhões de euros, sendo, ao menos, 25 milhões de euros na França.
Antes de aprovada, a proposta desse imposto gerou atritos com os Estados Unidos da América, que não concordam com a imposição fiscal. Houve até ameaças de retaliação por meio de sobre tarifas nas importações de produtos franceses.
No entanto, as ameaças não geraram resultados e o imposto foi aprovado e, inclusive, já está sendo cobrado pelas autoridades francesas.
4. E o que está acontecendo no Brasil?
O Brasil não está alheio às discussões atualmente existentes a respeito da tributação dos negócios digitais.
Além de estar presente nas discussões da OCDE, já que participante do denominado “Inclusive Framework”, o Brasil atualmente conta com alguns projetos de lei que visam a endereçar a questão.
O principal deles, que vem chamando mais atenção, é o projeto de criação da Contribuição sobre Serviços Digitais (“CSSD”), veiculado no Projeto de Lei Complementar nº 218/2020. A contribuição incidiria sobre qualquer contribuinte que faça parte de grupos econômicos com receita bruta anual superior a R$ 4,5 bilhões. O valor seria de 3% sobre a receita auferida no Brasil.
Como se observa, o projeto tem grande inspiração no denominado “tax GAFA”, tendo a mesma ideia básica de tributar as grandes empresas de tecnologia que gerem altos valores com os usuários brasileiros. A peculiaridade brasileira é a de que, por se tratar de uma contribuição, o valor estaria vinculado a uma finalidade exposta na própria lei instituidora que, nesse caso, seria o financiamento de programa de renda básica.
Entre outros projetos que podemos citar em sentido análogo, há o Projeto de Lei Complementar nº 131/2020, que traria regime diferenciado da Cofins para empresas com receitas elevadas e que utilizassem plataformas digitais. Para essas empresas, com receitas superiores a vinte milhões de dólares globalmente ou R$ 6,5 milhões no Brasil, a alíquota da Cofins seria de 10,6%, havendo um aumento justamente de 3%.
Também, há a proposta de criação de uma CIDE-Digital, por meio do Projeto de Lei nº 2.538/2020.
Por esse projeto, restaria criada uma CIDE cujos recursos seriam destinados ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. A CIDE incidiria sobre conteúdos e plataformas digitais, sempre sobre a receita auferida com usuários brasileiros. As empresas contribuintes seriam aquelas com receita bruta global superior a R$ 3 bilhões e receita bruta superior a R$ 100 milhões no Brasil. As alíquotas da contribuição seriam progressivas, de 1% até as receitas de R$ 150 milhões de reais, de 3% na faixa entre R$ 150 milhões e R$ 300 milhões, e 5% na faixa acima de R$ 300 milhões.
5. Conclusões
Como se viu nesse artigo, a única medida concreta até o momento para tributar as grandes empresas da economia digital foi realizada pela França.
Apesar de essa ser a única medida, a questão vem sendo bastante priorizada pelos debates da OCDE e, recentemente, surgiram propostas legislativas no Brasil.
De forma geral, a ideia que permeia todas as discussões tem sido de deslocar a tributação para o domicílio do usuário dos serviços digitais, independentemente de presença física da empresa nesse país.
Agora, seja em relação ao Brasil, seja em relação aos demais países, cabe aguardar novos passos adotados e as repercussões da primeira tentativa lançada pela França.
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