Diz-se que, muitas vezes, a realidade social muda e o direito leva muito mais tempo para conseguir disciplinar estas novas situações que já estão ocorrendo. Isso pode ser facilmente verificado em relação ao desenvolvimento e licenciamento de softwares. E, neste sentido, há hoje enorme dificuldade para se compreender o regime de tributação aplicado aos softwares, especialmente quando consideramos que hoje o uso de programas de computação pode ser feito por distintas maneiras: download, acesso pela internet etc.
Neste sentido, em 2021 foi proferida uma relevante decisão no que diz respeito à tributação incidente sobre operações de software, e esta decisão acabou por influenciar um recente posicionamento da Receita Federal do Brasil sobre o assunto.
Apresentaremos, a seguir, tanto a discussão ocorrida no âmbito do STF, quanto os posicionamentos mais recentes do fisco, a fim de delimitar qual o atual regime de tributação de operações que envolvam licença e cessão de uso de software.
1. O entendimento do STF
O Supremo Tribunal Federal (STF) vem se posicionando em relação à tributação de software há vários anos. O principal ponto de discussão diz respeito ao questionamento quanto à incidência de Imposto Sobre Serviços (ISS), tributo municipal, ou do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS), imposto estadual, sobre as operações de comercialização de softwares.
Em 1998, o STF se decidiu pela possibilidade de incidência do ICMS sobre operações que envolvessem a comercialização de software que fosse gravado em suporte físico e comercializado no varejo, o que ficou conhecido como software de prateleira. Na oportunidade, entendeu-se que o software de prateleira se caracterizaria como mercadoria tangível, e seria diferente de um software customizado para um determinado cliente. Por estas razões, estaria sujeito à incidência de ICMS.
Em 2010, no julgamento da medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 1.945/MT, o STF passou a entender que seria possível a incidência do ICMS sobre o software padronizado comercializado por meio da transferência eletrônica de dados, inclusive quando houvesse o download do software por meio da internet. Naquele momento, o Supremo parecia demonstrar que firmaria entendimento no sentido de que o termo “mercadoria” não estaria restrito a “bem corpóreo objeto de atos de comércio ou destinado a sê-lo”.
Em 2021 houve relevante alteração de entendimento pelo Tribunal. Foram finalizados os julgamentos de duas ADIs que tratavam sobre o assunto, a ADI nº 1.945/MT e a ADI nº 5.659/MG. Na oportunidade, o Ministro Dias Toffoli, relator para o acórdão, proferiu voto em que asseverou entender que a tradicional distinção entre software de prateleira (padronizado) e software por encomenda (personalizado) parecia não ser mais suficiente para definir a competência para tributação das operações de licenciamento ou cessão de uso de programas de computador. Isso considerando-se as diversas modalidades de licenciamento ou cessão de uso atualmente disponíveis aos consumidores.
De acordo com o Ministro Dias Toffoli, os softwares que estavam, inicialmente, disponíveis em mídias físicas, passaram a ser, em sua grande maioria, oferecidos por meio de download em ambiente virtual. Acresce-se a isso o fato de que, mais recentemente, foi disseminada a utilização da infraestrutura em nuvem, momento a partir do qual os usuários dos programas de computador passaram a ter acesso direito aos softwares por meio da internet.
Assim, ainda nos termos do voto do Ministro Dias Toffoli, como a Constituição Federal de 1988 (CF/88) não possui disposição expressa indicando que a incidência do ICMS mercadoria somente se daria no caso da comercialização de bens corpóreos, como, tampouco, estabelece que qualquer operação envolvendo bens intangíveis deve ser considerada como prestação de serviços sujeita à incidência de ISS, é necessário resolver a questão de competência para tributação da comercialização de softwares.
O Ministro propôs, então, um critério objetivo para solucionar a controvérsia a respeito da incidência de ISS ou ICMS sobre operações envolvendo fornecimento de softwares. Com fundamento no texto da CF/88, que busca dirimir conflitos existentes na hipótese em que, de forma simultânea, haja fornecimento de mercadorias e prestação de serviços, o art. 155, § 2º, IX, b dispõe que o ICMS incidirá também “sobre o valor total da operação, quando mercadorias forem fornecidas com serviços não compreendidos na competência tributária dos Municípios”. Portanto, o próprio texto da CF/88 já teria estabelecido as bases para a solução de conflito de competências: a previsão, ou não, do serviço da lista estabelecida por Lei Complementar – no caso, a Lei Complementar nº 116/2003 (LC 116/03). Em seu voto, o Ministro menciona, também, diversos casos em que os Tribunais decidiram com base no mencionado critério objetivo para solução de conflitos de competência tributária (como o REsp 1.092.206/SP, julgado pelo STJ).
De acordo com este critério, então, se a atividade estiver prevista na lista da LC 116/03, estará sujeita à incidência do ISS e não do ICMS. Isso se aplicaria ao licenciamento ou cessão de uso de software, tanto na hipótese de ser padronizado, quanto quando for por encomenda, e independentemente da forma pela qual seja feita sua transferência.
Em seu voto, o Ministro também avaliou o fato de a LC 116/03 prever, como sendo sujeita ao ISS, a atividade de licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computador. E, neste aspecto, também considerou legítima a opção do legislador, uma vez que não teria ultrapassado o conceito constitucional de “serviço de qualquer natureza”. Para o Ministro, a elaboração de um software, em qualquer das suas espécies, é um serviço que resulta do esforço humano, sendo criação intelectual.
Outro argumento levantado pelo Ministro Dias Toffoli diz respeito ao fato de que para incidência do ICSM é indispensável que haja transferência da propriedade do bem. E isso não se observa nas operações envolvendo softwares, que são baseadas na concessão de licenças ou cessão de direito de uso.
Finalmente, em relação ao SaaS, o Ministro entende se tratar de operação complexa, pois, mesmo que a operação envolva software padronizado, haveria, ainda, serviços prestados em favor do usuário. Portanto, ainda nesta hipótese poderia ser aplicado o critério objetivo anteriormente mencionado, de forma a incidir apenas o ISS sobre a operação.
Em dezembro de 2021, e no mesmo sentido das decisões apresentadas nas mencionadas ADIs, o STF, apreciando o tema 590 da repercussão geral, fixou a tese de que “é constitucional a incidência do ISS no licenciamento ou na cessão de direito de uso de programas de computação desenvolvidos para clientes de forma personalizada, nos termos do subitem 1.05 da lista anexa à LC nº 116/03.”
Desde o final do ano de 2021, portanto, o STF firmou entendimento de que sobre as operações que envolvem licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação deve incidir somente ISS, e não o ICMS. É importante mencionar que este entendimento possui eficácia erga omens, ou seja, vale para todos.
Apresentadas as recentes decisões do STF, passaremos a indicar o entendimento que vem sendo manifestado pelo fisco federal em relação à incidência de diversos outros tributos de competência federal.
Ou seja, atualmente, o STF firmou entendimento de que, sobre o software, haverá a incidência do ISS. Conforme se viu da argumentação acima, isso não significa necessariamente que o software e as empresas que os desenvolvem sejam prestadoras de serviço. Na verdade, a argumentação do STF é no sentido de que se trata de uma atividade com natureza jurídica de difícil definição, sendo que o critério para a incidência do ISS é a previsão dos softwares na Lista Anexa à Lei Complementar nº 116/2003.
2. Posição da RFB – Licença de uso
Como se verá, paralelamente à delimitação mais teórica firmada pelo STF, a RFB vem se manifestando há muitos anos sobre a tributação de software. Nos tópicos a seguir, vamos resumir os entendimentos já exarados e, como se verá, há uma certa dissonância entre os posicionamentos exarados.
- IRRF – Solução de Consulta nº 191/2017
Na Solução de Consulta nº 191/2017, a RFB se manifestou sobre a incidência de imposto de renda retido na fonte sobre remessas feitas ao exterior a título de remuneração de software.
Para a Receita Federal do Brasil, é devido Imposto de Renda na Fonte, incidente à alíquota de 15%, sobre os valores remetidos ao exterior a título de remuneração de Software as a Service (SaaS). Isso porque, no entendimento da RFB, os SaaS deveriam ser considerados como serviços técnicos, que só podem ser prestados por quem detenha conhecimentos especializados em informática, e seriam decorrentes de estruturas automatizadas com claro conteúdo tecnológico.
A mesma Solução de Consulta ainda apresenta o entendimento da RFB em relação à incidência de Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE) sobre os valores remetidos a residentes ou domiciliados no exterior, como contraprestação ao uso ou acesso de SaaS. De acordo com a RFB, incide a CIDE, à alíquota de 10%, nos casos mencionados, pois os SaaS devem ser considerados serviços técnicos.
- Pis e COFINS – Solução de Divergência nº 2/2019, Solução de Consulta nº 146/2019 e 448/2017
De certa forma contrariando o entendimento firmado nas Soluções de Consulta que versaram sobre IRRF e CIDE, em que restou consignado que a remuneração de software consistiria na remuneração de um serviço técnico, a Cosit entendeu que a contraprestação pela licença de software seria, em verdade, remuneração de um direito autoral, ou seja, um royalty.
Nesse sentido, a remessa de royalties para o exterior, em remuneração ao software, não seria fato gerador do PIS e da COFINS.
Vale salientar que, em se entendendo que se trataria de serviço técnico, a remessa ao exterior atrairia a incidência das mencionadas contribuições.
- Recente entendimento da RFB sobre o percentual de presunção do lucro presumido
Depois do entendimento consolidado no STF a respeito da incidência de ISS sobre licenciamento de uso de software, a RFB proferiu, em 7 de fevereiro de 2023, Solução de Consulta COSIT nº 36/2023, na qual alterou seu entendimento a respeito do percentual de presunção de lucro aplicável a esta atividade.
Anteriormente, na Solução de Consulta DISIT nº 6022/2021, a RFB havia esclarecido que a venda de software de prateleira seria venda de mercadoria, e estaria sujeita ao percentual de 8% sobre a receita bruta para determinação da base de cálculo do IRPJ e 12% para a da CSLL, ambos na hipótese de contribuintes serem optantes pelo lucro presumido. Já a venda de software por encomenda seria classificada como prestação de serviço, sendo o percentual de 32% aplicável para a determinação da base de cálculo tanto do IRPJ quanto da CSLL.
A partir de agora, porém, e nos termos da Solução de Consulta nº 36/2023, para as “atividades de licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computador padronizados ou customizados em pequena extensão”, o percentual para determinação da base de cálculo do IRPJ e da CSLL para empresas optantes pelo lucro presumido é de 32%, previsto para a prestação de serviços (Lei nº 9.249/1995, art. 15, III, “a” e art. 20, I).
Vale salientar que o posicionamento não é isento de críticas, já que o STF não afirmou categoricamente que se trata de prestação de serviços, mas sim que a Lei Complementar nº 116/2003 estabeleceu, diante de sua atribuição de solução de conflito de competência, que incidiria o ISS.
3. Conclusão
Como pudemos perceber, o assunto envolvendo a tributação de software é bastante complicado. Mesmo no âmbito judicial houve diversos entendimentos manifestados nos últimos anos. No momento, porém, a jurisprudência parece ter se consolidado em relação ao conflito de competência envolvendo Estados e Municípios, no sentido de que o imposto municipal (ISS) deve incidir, sendo incabível a incidência do ICMS.
Como consequência da confirmação quanto à incidência apenas de ISS sobre as operações, a RFB manifestou recente Solução de Consulta alterando seu entendimento em relação ao percentual de presunção de lucro aplicável para as operações. Neste caso, só restará aos contribuintes que se acharem prejudicados pelo novo entendimento buscar o judiciário para tentar reverter o posicionamento.
Sobre os tributos incidentes sobre a remessa ao exterior, tem-se que ainda há incertezas, já que, em relação ao IRRF e à CIDE, a RFB entendeu se tratar de remuneração de serviços técnicos e, em relação ao PIS e COFINS, afirmou que se trataria de remuneração de direito do autor.
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