1. Introdução
A recente saída da Ford do Brasil, amplamente noticiada por todos os meios de comunicação, levantou um antigo debate sobre os incentivos fiscais que as montadoras e o setor automobilístico vêm recebendo ao longo dos anos no Brasil.
Esse artigo abordará a evolução das políticas fiscais adotadas em relação às montadoras no Brasil.
2. Histórico
Desde os primórdios da industrialização no Brasil, a indústria automotiva tem sido vista como uma das prioritárias para os governos brasileiros.
Nesse sentido, o estímulo à instalação das montadoras no Brasil se deu ainda no governo Juscelino Kubitschek, que concedeu benefícios à indústria de automóveis.
Também pode-se citar políticas desde a década de 60 e 70, quando o governo brasileiro instituiu o programa Concessão de Benefícios Fiscais a Programas Especiais de Exportação, que tinha como destinatárias prioritárias justamente as montadoras.
Posteriormente, na década de 80, quando o presidente era Fernando Collor, houve a redução da tributação sobre a produção de veículos.
Posteriormente, a produção de carros populares no Brasil foi alvo de políticas fiscais específicas, notadamente de redução a zero da alíquota do IPI. Tal medida visava a retomar a linha de montagem do Fusca no Brasil no governo Itamar Franco.
No governo Fernando Henrique Cardoso, houve aumento dos benefícios às montadoras, com redução de tributos incidentes sobre automóveis, e um estímulo fiscal à instalação de fábricas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Nessa época, a Ford instalou sua fábrica em Camaçari, na Bahia. À época, foi instituído o regime automotivo, que exigia contrapartidas das montadoras, de índices mínimos de nacionalização de carros produzidos no Brasil e de um percentual mínimo de exportação da produção.
A política de descentralização da fabricação de automóveis foi mantida no governo Luiz Inácio Lula da Silva. Em momentos específicos, como o da crise financeira de 2008, o governo tentou estimular a economia com a redução de IPI para automóveis (assim como fez para eletrodomésticos e materiais de construção).
3. Programa Inovar Auto
O Inovar Auto (Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores) possivelmente foi o primeiro programa mais elaborado do ponto de vista do objetivo e das contrapartidas exigidas por parte das empresas do setor.
Como o próprio nome do programa sugeria, o objetivo era apoiar o desenvolvimento tecnológico, a inovação, a segurança, a proteção ao meio ambiente, a eficiência energética e a qualidade dos veículos e das autopeças.
O Inovar Auto exigia a habilitação prévia das empresas do ramo automobilístico, exigindo-lhes, para tanto, o compromisso de atingir níveis mínimos de eficiência energética em relação aos produtos comercializados no país, bom como atingir determinados padrões de qualidade nos produtos, e demais obrigações constantes de termo de compromisso.
Como benefício, as empresas habilitadas faziam jus a crédito presumido de IPI, calculado sobre insumos estratégicos, ferramentas, pesquisa, desenvolvimento tecnológico, inovação tecnológica e outros.
O montante de crédito presumido dependia do gasto respectivo. Por exemplo, em casos de insumos estratégicos e ferramentas, o crédito presumido era calculado pela multiplicação de um fator previsto no Decreto sobre o valor dos dispêndios. Para os gastos com pesquisa, desenvolvimento e inovação tecnológica, por sua vez, o crédito era de 50% dos dispêndios, limitados a 2% da receita bruta do segundo mês calendário anterior ao mês de apuração do crédito.
Para os estabelecimentos importadores, havia a previsão de crédito presumido de 30% do imposto pago na saída desse estabelecimento, desde que atendidos os requisitos previstos, como o veículo constar de projeto de investimento aprovado.
O crédito presumido de IPI do produtor poderia ser utilizado para abatimento do próprio IPI devido nas saídas realizadas pelas empresas habilitadas, limitado a 30% do imposto devido. O saldo remanescente poderia ser utilizado para pagamento do IPI na importação de veículos, ou nos meses subsequentes, até 31 de dezembro de 2017.
O crédito presumido do importador, por sua vez, poderia ser utilizado para pagamento de IPI na saída.
A legislação determinada que a empresa que apurasse os créditos presumidos mantivesse comprovações gerenciais do cálculo dos referidos créditos, bem como que apresentasse relatórios dos dispêndios ao MDIC.
O programa poderia ser aproveitado juntamente com outros benefícios fiscais, como os destinados à inovação tecnológica.
O crédito presumido não era o único benefício previsto no Decreto que instituiu o Inovar Auto. Havia também a redução de alíquotas para importações oriundas de veículos de algumas localidades. Ademais, havia a suspensão, prevista para as importações que fizessem jus ao crédito presumido.
Por fim, o Decreto do Inovar Auto previa que os créditos presumidos do IPI não sofreriam incidência do PIS, da COFINS, do IRPJ e CSLL.
Em 31 de dezembro de 2017 o programa Inovar Auto chegou ao seu fim.
4. Programa Rota 2030
O programa Rota 2030 foi instituído como sucessor do Inovar Auto, que se encerrou em 31 de dezembro de 2017.
O ideal do programa é o de promover a evolução da produção de veículos e autopeças no Brasil, com vistas a inserir o país no mercado global de exportadores, respeitando a sustentabilidade ambiental e a cidadania.
O programa prevê diversos requisitos e metas a serem atendidos pelos beneficiários, ao longo dos quinze anos de duração, que serão divididos em três quinquênios, quando haverá avaliações e reorientações das metas.
O programa prevê que as empresas habilitadas devem realizar dispêndios mínimos em pesquisa e desenvolvimento, de 0,25% a 1,20% da receita bruta de vendas e serviços relacionados a produtos automotivos, excluídos os impostos e contribuições incidentes sobre a venda.
Do valor investido em pesquisa e desenvolvimento, a empresa beneficiária poderia utilizar 30% para redução do IRPJ e CSLL. Nesse caso, o cálculo da redução é feito pela aplicação das alíquotas do IRPJ mais adicional e da CSLL sobre o total do dispêndio passível de redução (até 30% do total). Tal dedução, no entanto, não pode exceder o total apurado no lucro real e nas estimativas apuradas com base na receita bruta ou balancete de suspensão e redução. No caso de dedução na estimativa, o valor deduzido não será considerado como imposto pago e poderá ser considerado na dedução no ajuste anual, até o limite do IRPJ e CSLL apurados.
A parcela passível de dedução que extrapolar o IRPJ e CSLL apurados e, portanto, não puder ser deduzida no próprio período, poderá ser deduzida em períodos subsequentes, até o limite de 30% dos tributos devidos.
Se o dispêndio com pesquisa e tecnologia for considerado estratégico, a empresa ainda poderá realizar uma dedução adicional do IRPJ e CSLL correspondente à alíquota desses tributos, com adicional do IRPJ, sobre mais 15% dos dispêndios de pesquisa e desenvolvimento. São considerados estratégicos os investimentos voltados para manufatura avançada, conectividade, sistemas estratégicos, soluções estratégicas para mobilidade e logística, novas tecnologias de propulsão e autonomia veicular, desenvolvimento de ferramental, moldes e modelos, nanotecnologia, pesquisadores exclusivos, big data, sistemas analíticos preditivos e inteligência artificial.
A legislação ainda prevê que a parcela reconhecida no resultado das empresas relativamente ao benefício fiscal não deve ser incluída na base de cálculo do PIS, da Cofins, do IRPJ e CSLL.
Ainda, a legislação também estabelece que o benefício em questão não exclui a aplicação de demais benesses, como as inerentes à zona franca de Manaus, Sudene, empresas de tecnologia e automação etc.
O outro benefício fiscal previsto na legislação da Rota 2030 se refere à importação de partes e peças novas sem capacidade de produção nacional equivalente. Nesse caso, a legislação prevê a isenção do imposto de importação em caso de os produtos serem destinados à industrialização de produtos automotivos.
A estimativa é de que os benefícios fiscais concedidos no programa Rota 2030 custem R$ 1,5 bilhão por ano.
5. Críticas
A relevantíssima saída da Ford do Brasil, com impacto direto e severo na cadeia de fornecedores do ramo e nos trabalhadores do setor, levantou novamente questões sobre a política de concessão de benefícios fiscais ao setor automotivo.
Como se viu, não se trata de questão de um governo específica. O setor automotivo foi beneficiário de diversos programas de redução de carga fiscal desde o governo Juscelino Kubistchek, sendo até ampliados ao longo dos anos.
A primeira crítica em geral que normalmente se coloca em relação aos benefícios fiscais é em relação aos subsídios em geral, no sentido de que tais benefícios teriam efeitos nocivos na economia.
De forma mais específica, há especialistas que defendem que os benefícios fiscais, considerados gastos indiretos (pois o governo abre mão de parte de sua arrecadação) dificultam o controle e a transparência do valor efetivamente concedido às empresas. Da mesma forma, defende-se que, apesar de haver contrapartidas nos programas, seria extremamente difícil verificar a aplicação dos valores em investimento por parte das empresas. Ainda, seria impossível verificar a efetividade desse gasto indireto, já que os benefícios eventualmente gerados não seriam mensuráveis, ou quantificáveis.
No presente momento, a questão ganha ainda mais relevância pois, a despeito da existência de benefícios específicos ao setor, além dos já aplicáveis à indústria em geral, a Ford ainda assim optou por sair do país.
Evidentemente, a saída da Ford, como vem sendo relatado, inclusive pela própria empresa, tem outros motivos, como os planos globais da Ford em outros mercados. No entanto, é impossível não retomar o debate dos benefícios ao setor, já que os valores renunciados pelo governo brasileiro são relevantes e, ao que parece, não tem tornado o mercado tão atrativo para as montadoras.
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