Recentemente, o pleno do Supremo Tribunal Federal analisou a constitucionalidade do parágrafo único do art. 116 do CTN.
A Ação julgada foi a Ação Direta de Inconstitucionalidade (“ADI”) nº 2.446, ajuizada pela Confederação Nacional do Comércio (“CNC”), em abril de 2001.
Em sua ação, a CNC argumenta que a regra geral antielisão do parágrafo único do art. 116 do CTN violaria o princípio da legalidade e da tipicidade do direito tributário, já que permitiria à autoridade fiscal tributar fatos não materializados e, assim, não previstos em lei, bem como violação ao princípio da separação de poderes, ao permitir à autoridade fiscal que atuasse como legislador preenchendo lacunas legais e procedente a tributação por analogia.
A ADI foi distribuída à Ministra Carmen Lúcia, que a julgou improcedente, entendendo, portanto, que o referido parágrafo único do art. 116 do CTN não seria inconstitucional.
Nesse conteúdo, vamos analisar essa decisão e seu impacto para o futuro.
1. O que estabelece o parágrafo único do art. 116 e por que gera tanta discussão?
Os profissionais que atuam com direito tributário sabem que poucos temas geram tanta discussão quanto o parágrafo único do art. 116 do CTN.
Para analisarmos o tema, é importante trazer sua redação, que assim dispõe:
Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.
Como se infere, a autoridade fiscal pode, pelo dispositivo em questão, desconsiderar atos ou negócios jurídicos formulados ou ocorridos para dissimular a ocorrência do fato gerador.
A aplicação do artigo, portanto, se dá em relação ao denominado planejamento tributário.
Na prática, as autoridades fiscais se valeram do art. 116, parágrafo único, para desfazer os efeitos de planejamentos fiscais considerados abusivos, aplicando os efeitos do negócio reputado como efetivamente ocorrido.
Como exemplo, podemos nos valer da situação em que o contribuinte divide uma empresa em duas ou mais para se manter no lucro presumido, ou a hipótese em que a empresa reduz o capital e devolve ativo ao sócio pelo valor de custo que posteriormente é alienado por esse sócio pessoa física, gerando uma menor tributação do ganho de capital.
Essas situações e outras muito mais sutis normalmente eram atacadas pelo Fisco por conta do disposto no art. 116, parágrafo único do CTN. Nesses casos, o Fisco aplicaria os efeitos fiscais desconsiderando os negócios considerados abusivos.
Nos exemplos acima, o Fisco desconsideraria a separação das empresas e tributaria o contribuinte pelo lucro real e, no segundo caso, desconsideraria a redução de capital e exigiria da empresa o ganho de capital como se esta tivesse alienado o ativo.
Em outras palavras, entendendo ter havido o planejamento tributário abusivo, o Fisco desconsiderava os efeitos dos negócios efetivamente praticados e tributava o evento na forma como entendia que deveria ter ocorrido, que seria, a seu ver, a forma mais natural e direta dos negócios.
De forma geral, os tribunais judiciais e CARF vinham permitindo que o Fisco aplicasse o referido dispositivo a casos como os exemplificados, rechaçando os argumentos que os contribuintes vinham expondo até o momento.
2. O que muda com o atual julgamento?
Como adiantado, o parágrafo único do art. 116 do CTN foi julgado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal.
Isso significa, em um primeiro momento, que o artigo poderia continuar sendo aplicado pelas autoridades fiscais.
Ou seja, a rigor, em uma primeira leitura, o desfecho teria sido desfavorável aos contribuintes.
No entanto, os fundamentos do voto da Ministra Carmén Lúcia poderiam representar argumentos relevantes para os contribuintes, especialmente em duas questões.
- O Planejamento Tributário
Da leitura do voto, extrai-se que, ao argumentar pela constitucionalidade do dispositivo legal, a Ministra relatora afirmou que o art. 116, parágrafo único, do CTN, constitui-se como norma que combate a evasão fiscal, e não a elisão fiscal.
Como se sabe, a elisão se distingue da evasão por constituir uma redução lícita de tributos por meio de atos ou negócios jurídicos que evitam o fato gerador. A evasão, por sua vez, corresponde à sonegação propriamente dita, que, após a prática do fato gerador, visa a ocultar sua ocorrência.
Ou seja, nos termos dos fundamentos da Ministra Carmén Lúcia, o parágrafo único do art. 116 não poderia ser utilizado pelo fisco para desconstituir negócios jurídicos lícitos que evitam o fato gerador.
Nos dois casos que mencionamos acima, o artigo então não poderia ser aplicado pelo Fisco, já que não houve ocultação do fato gerador, mas sim atos e negócios lícitos prévios ao fato gerador que reduziram a carga tributária do contribuinte. Isso é bastante relevante, porque pode alterar a forma como atualmente se enxerga o planejamento tributário, retomando a fase da corrente formalista.
Nós já escrevemos um conteúdo sobre a evolução do entendimento a respeito do planejamento tributário, que pode ser acessado aqui.
Basicamente, houve três correntes. A primeira foi a formalista, que entendeu que os atos jurídicos válidos do ponto de vista jurídico não poderiam ser desconstituídos ou ter seus efeitos fiscais ignorados pelas autoridades tributárias, já que a liberdade de o contribuinte se organizar do ponto de vista fiscal e obter a menor carga possível seria plena.
Atualmente, prevalece a corrente de que os atos e negócios jurídicos, para gerarem efeitos na esfera fiscal, devem ter propósito negocial além da economia fiscal.
Dessa forma, o entendimento da Ministra Carmén Lúcia poderia devolver o entendimento atual para a primeira corrente, mais protetiva aos contribuintes, o que representaria um enorme revés para o Fisco e a possibilidade de reversão de inúmeros autos de infração atualmente em discussão.
Esse efeito, no entanto, não é automático, já que a ação dos contribuintes foi julgada improcedente, e dependeria de os tribunais passarem a entender os fundamentos da Ministra Carmén Lúcia nesse sentido.
A dificuldade é que o voto é singelo e não é totalmente claro a respeito da extensão do art. 116, parágrafo único do CTN. A questão que fica no ar, portanto é se será suficiente para reverter o entendimento que vem prevalecendo a respeito do tema já há muitos anos.
Outro ponto de dificuldade é que o voto trata do fato de o art. 116, parágrafo único ser uma norma antievasão fiscal. Isso é bastante questionável, já que a evasão corresponde à própria sonegação e, a rigor, não seria necessária uma regra geral antiabuso para coibir a sonegação fiscal.
Certamente o argumento será testado pelos contribuintes e será necessário aguardar, talvez anos, para sabermos o desfecho da tese.
- A necessidade de regulamentação do art. 116, parágrafo único, do CTN
Outro ponto importante que o voto da Ministra Carmén Lúcia deixa em aberto se refere à regulamentação do art. 116, parágrafo único do CTN. Como se sabe, o próprio dispositivo prevê que será aplicado na forma de regulamento legal.
No entanto, como é abordado no voto, tal regulamentação jamais existiu. O voto não deixa expresso se o artigo não poderia ser aplicado até que sobreviesse a lei ordinária o regulamentando, deixando a questão em aberto também.
Atualmente, os contribuintes vêm obtendo derrotas nesse argumento, mas seria possível levantar que o voto da Ministra sobre o tema consignou que seria necessária tal regulamentação, especialmente ao dispor sobre as sucessivas tentativas de fazê-lo e sempre sem sucesso.
O que pode pesar contra essa tese é o fato de que o voto não foi expresso a esse respeito, apenas dando a entender que seria necessária tal regulamentação.
3. Conclusões
O julgamento do Supremo Tribunal Federal representou um relevante episódio na longa discussão a respeito do art. 116, parágrafo único, do CTN. Firmou-se o entendimento de que o dispositivo legal é constitucional.
No entanto, em que pese os contribuintes terem saído derrotados da discussão, o voto da Ministra Relatora Carmén Lúcia deu a entender que o dispositivo legal somente poderia ser utilizado contra evasão fiscal, e não contra elisão fiscal. Na prática, isso representaria uma enorme redução do âmbito de aplicação da regra, o que, ao final, representaria uma vitória aos contribuintes.
Também, o voto daria a entender que o dispositivo legal em questão dependeria de regulamentação por lei ordinária, o que ainda não ocorreu, podendo-se argumentar que somente seria aplicável após a vinda da referida lei ordinária.
Será necessário verificar se o judiciário e os tribunais administrativos adotarão esse entendimento, já que ambas as teses são construções feitas a partir dos argumentos do julgado, e não da decisão propriamente dita, que asseverou a constitucionalidade do parágrafo único do art. 116 do CTN.
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